ANTÔNIO VIEIRA NOS AÇORES
ECOS DO 4º CENTENÁRIO
O 4º Centenário
No ano em que o mundo celebra o 4º Centenário de nascimento do P. Antônio Vieira faz bem à alma, ao coração, à inteligência e à civilização, recordar a ação de um homem tão ilustre e de tão altos serviços à nação e à humanidade. É mais auspicioso celebrar tão faustosa data no arquipélago dos Açores onde por forças imponderáveis ele foi chamado para dar algum recado, retemperar seu espírito, recompor seu psiquismo, ordenar suas idéias. Após isto, prosseguiu sua missão em outras plagas. Vieira nos Açores não é ato banal, segundo supomos. É um encontro “marcado”.
Vieira nos Açores, é um acontecimento feito de episódios
incrivelmente épicos: desde a tragédia no mar; o saque dos piratas;
o roubo do navio; o lançamento dos tripulantes, despidos, na Ilha Graciosa;
a recomposição de todos; a ida a Igreja do Santo Cristo; o diálogo
com o Sr. João de Sousa Pacheco; o Sermão na capela do Colégio;
a procissão e o Sermão na Sé, são tudo momento
memoráveis de alto poder visual e semiótico. É um enredo
cinematográfico de grande sedução, poder de atrair a
atenção e provocador de alta reflexão.
No meio de toda essa tragédia e da popular exaltação,
surge um herói e um profeta, sempre enérgico e sempre meigo,
sempre solidário e sempre enigmático. Ele chegou ali “por acaso”,
mas deve haver alguma razão oculta que aqui o chamou. Enfim, os Açores
parece serem um espaço onde agem poderes especiais. Escutemos algumas
linhas do Sermão de Vieira nos Açores: “ (...) Acaso e bem acaso,
aportei às praias desta ilha; acaso e bem acaso entrei pelas portas
desta cidade; acaso e bem acaso me vejo hoje neste púlpito (...). E
quem me disse a mim ou a vós, se debaixo deste acaso se oculta algum
grande conselho da Providência Divina?” (Vieira,vol. X, 1951:362 ) –
Anexo 1. Escutemos mais duas frases do Sermão nos Açores “Com
os olhos no céu, com os olhos na terra, e com os olhos no Evangelho
determino pregar hoje ...”. “Senhor, não vos dou graças por
me livrardes do perigo, senão por meterdes nele. Quando por tal causa
me meteste no perigo, então me livraste”.(Vieira, ibidem: 364 e 390
)
Anexo 1 e 3. Cada um descubra ou tente suas hipóteses para compreender
tudo isso que não cabe nas dimensões desta comunicação...
É auspicioso rememorar aqui o grande Vieira, não só pela
grandeza humana e moral da pessoa, mas ainda pelo fato de ele ter estado aqui,
nos Açores, deixando suas marcas indeléveis de grandeza, simplicidade,
disponibilidade e senso profético, com seu poder transformador. Como
homem genial, como herói arriscando a vida, como cultor dos grandes
valores da humanidade, como lutador pela liberdade, pela justiça e
pela dignidade das pessoas, como orador e humanista e como missionário
na Amazônia, Vieira é um GIGANTE. Como homem arrojado, persistente,
de grandes ideais, de imenso discernimento intelectual e de grande coração
Vieira é uma ÁGUIA de altos vôos, de arroubos descomunais
e de grandes ousadias.
Para além de sua realidade humana, Vieira é a VOZ da humanidade
lutando por valores perenes, que sobrevivem acima das pessoas e do tempo,
na busca de uma existência mais digna e solidária, com mais bem-estar...
2- VIEIRA – UMA VISÃO PANORÂMICA
Quem foi o Antônio Vieira que aportou aos Açores em julho de 1654? Efetivamente o P. Antônio Vieira dispensa grandes apresentações. É bastante conhecido, apesar de correrem muitas informações distorcidas.
Não foi fácil ser Vieira, mas foi sua Missão. É que os grandes líderes na sociedade dos humanos, costumam sofrer traições e injúrias, pois não podem atender a “gregos e troianos”. A opção e o custo é de quem deve decidir. Foi talvez um dos primeiros homens da terra de dimensões mundiais. Atuou no Brasil, em Portugal, em Roma, Nápolis e Florença, na França e seu nome e sua fama de homem sábio, enérgico e decidido e de grande orador correu todos os países espânicos, toda a Europa e América, África e Ásia, onde atuavam os Jesuítas.
Defendeu o Brasil contra as Invasões Holandesas; Defendeu Portugal livre contra a dominação da Espanha; Defendeu a liberdade e a dignidade dos índios e dos negros.
Foi conselheiro real, diplomata, filósofo, humanista, missionário,
escritor. Para levar à frente seus altos ideais cultivou grandes utopias.
Dedicou-se sem limites a seu povo, a seus ideais e a seu rei, muitas vezes
arriscando a própria vida. Acreditou e fez acontecer. Vieira é
o grande Patriarca da Lusofonia; Fernando Pessoa lhe deu o título magnífico
de Imperador da Língua Portuguesa. É também chamado Príncipe
dos Oradores Sacros e Imperador do Púlpito. Foi um dos maiores oradores
de todos os tempos. A humanidade produziu poucos homens da estrutura moral
e do arrojo, coragem e generosidade de Vieira. Vieira viveu de 1608 a 1697.
90 anos (quase) bem vividos. Encheu o século XVII com seu saber e com
sua ação transformadora. Como sábio atuante teve uma
multidão de amigos e até alguns inimigos vorazes. Foi processado
pela Inquisição e condenado por vias políticas, sem que
tivesse cometido crime algum. Mas recorreu ao Papa e foi eximido de qualquer
culpa, no meio de grandes elogios do Papa que equivalem a uma grande consagração.
Vieira, como todos os seres humanos mais sábios e empreendedores, teve
acertos e desacertos. Nunca decretou a própria infalibilidade. Mas
sempre fez por acertar e nunca desistiu da busca do melhor e mais justo. Sua
principal produção literária são seus SERMÕES
e suas CARTAS. São monumentos para a eternidade. Dignificam a humanidade.
Dividimos a vida de Vieira em 7 (sete) fases:
1ª – 1608 a 1626 – Lisboa e Bahia – (18 anos)
(nascimento , estudo)
2ª – 1626 a 1641 – Pernambuco e Bahia – (15 anos)
(Magistério em Pernambuco. Sermões na Bahia)
3ª – 1641 a 1652 – Portugal e Europa – (12 anos)
(Diplomata e Conselheiro na Corte de Portugal. Embaixador na Europa)
4ª – 1652 a 1661 – Missionário: Maranhão, Pará, Portugal – (9 anos)
5ª – 1661 a 1669 – Inquisição – Portugal
– (8 anos)
(Processo em Coimbra. Condenação)
6ª – 1669 a 1681 – Roma e Lisboa – (11 anos)
(Reabilitação em Roma pelo Papa. Notoriedade de seus Sermões).
7ª – 1681 a 1697 – Bahia – (16 anos)
(Revisão e publicação de sua obra;Visitador Geral do
Brasil e Maranhão)
3- UM NAUFRÁGIO É O SINAL – O TEXTO E O CONTEXTO
Vieira foi trazido aos Açores após terrível naufrágio,
seguido de saque por navio de piratas holandeses. Vieira vinha das Missões
da Amazônia, de São Luís do Maranhão e dirigia-se
para Lisboa. Este é o contexto. Estamos no mês de agosto de 1654.
Vieira tinha 46 anos. Saiu de S. Luís em meados de junho; em meados
de agosto naufraga na altura dos Açores; no dia 15 de outubro prega
o Sermão de Santa Teresa; no dia 24 de outubro embarca para Lisboa,
onde chega em novembro; no dia 16 de abril de 1655 embarca de volta para o
Brasil. Nesses poucos meses Vieira agiu incansavelmente. Ele está num
dos ápices de seu gênio profético, abalando estruturas
débeis e provocando abalos nas torpezas de certas pessoas de grande
estatus na sociedade. De agosto de 1654 a abril de 1655 foram oito meses de
grande tensão e produtividade.
Vieira estava mergulhado nas atividades incansáveis das Missões no Amazonas. Havia grandes embates de Vieira, na defesa dos índios contra os colonos.
Em momento de grande tensão e contendas, no dia 13 de junho, Vieira pronunciara um dois mais belos e veementes Sermões: O Sermão de Santo Antônio aos Peixes, em São Luís do Maranhão. Poucos dias depois embarcou com destino a Lisboa para pedir proteção ao Rei D. João IV, para os índios do Brasil. No caminho acontece o naufrágio nos Açores e os fatos seguintes aqui narrados. Nos Açores pronuncia o grande Sermão de Santa Teresa. Após três meses nos Açores, retoma a viagem para Lisboa (24 de outubro). A ação nos Açores marca um dos pontos altos da trajetória a Vieira. Após a tragédia inicial no mar, em terra Vieira passa três meses amenos, de grande produtividade. Pode assim preparar-se para as dificuldades e conspirações que iria encontrar em Lisboa. No dia 1º de janeiro de 1655 pronuncia, na Capela Real, o magnífico Sermão da Sexagésima, que produziu um grande impacto na sociedade Lisboeta. Prega ainda o Sermão da 5ª Dominga da Quaresma, na Capela Real e o Sermão do Bom Ladrão, na Igreja da Misericórdia. Os cinco Sermões aqui citados marcaram época. Consegue do Rei os documentos sobre a liberdade dos índios que era seu objetivo primeiro desta viagem tão tumultuada e tão fértil. Em 16 de abril de 1655 embarca em Lisboa de regresso ao Brasil. Volta às suas Missões Amazônicas, com o aval do Rei na defesa dos índios.
II – OS ACONTECIMENTOS:
ARTICULAÇÃO E FORÇA VITAL NA OBRA DE VIEIRA
4 – A TRAGÉDIA DO NAUFRÁGIO
Vieira aqui esteve em circunstâncias excepcionais e não programadas,
mas “não por acaso” diz ele, no Sermão de Santa Teresa. Vieira
aqui desembarcou após terrível naufrágio na altura da
ilha do CORVO. Após passarem a mais extrema angústia, com o
navio sem mastros e sem velas, com a proa já submersa e açoitado
por grandes ondas, baloiçando no mar, sem rumo, “na paragem mais tormentosa
do Oceano”. Parecia certo e iminente o desfecho fatal. As circunstâncias
desse naufrágio são descritas pelo próprio Vieira, no
Sermão de Santa Teresa. Vieira tudo fazia para manter a esperança
de um milagre para salvar aquela gente da morte que se apresentava como inevitável.
Era uma situação desesperadora. Eram 41 (quarenta e uma) pessoas
num barco à deriva, despedaçado e naufragando sem uma tábua
de salvação e sem perspectivas.
Nesta situação trágica surge no mar, ao longe, também
açoitado pela tormenta, um navio que em seguida desapareceu. Pareceu
a visão do fogo de Santelmo, diz Vieira. Conseguiu aproximar-se dos
náufragos no dia seguinte. Era um navio pirata holandês. Vinha
roubar o navio dos náufragos. Roubaram o navio que estava carregado
de açúcar e roubaram todos os náufragos, suas bagagens
e inclusive suas roupas. Mas salvaram-nos. Como era mercadoria sem preço,
depois de nove dias deixaram todas as pessoas, despidas, na Ilha Graciosa.O
prestígio de Vieira salvou a tripulação. No Sermão
de Santa Teresa que pregará mais tarde, Vieira diz que o navio pirata
o deixou na ilha, como Jonas da Bíblia que foi vomitado em Nínive.
E que isso não foi por acaso. Nova missão inesperada o aguardava.
Seu caráter foi posto à prova.
5 – PÓS-NAUFRÁGIO E SAQUE
Vieira consegue roupas para todos, na ilha. Em seguida foram fazer “ação de graças pelo milagre na Igreja do Santo Cristo.” Eram quarenta e uma (41) pessoas os passageiros desta embarcação. Todos se salvaram.
Vieira foi O grande herói nestes momentos trágicos. Dele diz o seu grande biógrafo, André de Barros, no contexto desta narrativa, em sua célebre biografia do grande personagem, que Vieira tem um “coração verdadeiramente maior que o mundo, a quem nenhum perigo acovardava nem adversidade oprimia” (Vida do P. Antônio Vieira, p. 153). Os 41 (quarenta e um) náufragos mantiveram-se na Ilha Graciosa por dois meses recompondo-se e cuidando de suas vestes, todas pagas pelo P. Vieira. Cuidou para que nada faltasse a toda aquela gente, tripulantes e passageiros, padres e leigos. Cuidou de tudo como servo de todos. Enquanto esteve na Graciosa não se descuidou: prosseguiu sua obra missionária entre o povo da ilha.
Implantou aí a devoção do Rosário. O Pastor conhece suas ovelhas. Esta é a verdadeira imagem de um Vieira: uma pessoa ágil, generosa, e dedicada aos outros pensa na dimensão física e na espiritual. Vieira cuidou de todos, inclusive da alimentação, até embarcarem para Lisboa. É um pastor atento. Deste naufrágio levou lições vitais que lhe serviram por toda vida. Dele fala com destaque em três Sermões. Após este tempo passado na Ilha Graciosa, já recompostos e recuperados todos, seguiram para a Ilha Terceira. Aqui Vieira cuidou de recuperar seus livros e papéis escritos que eram os seus bens mais preciosos que os piratas holandeses lhe roubaram. Através de amigos conseguiu resgatar de Amsterdã esse material precioso para ele. É preciso sublinhar: Vieira não reclamou nada do que os piratas lhe roubaram. Apenas pediu de volta, da Holanda, seus verdadeiros tesouros. Estava disposto a pagar o que pedissem para os resgatar. Da Ilha Terceira dirigiu-se para a Ilha de São Miguel.
6- VIEIRA NA ILHA DE SÃO MIGUEL
“A Ilha de S. Miguel teve nesta passagem maior fortuna: ouviu no seu púlpito a este Divino Orador, como Creta e Malta o Grande Paulo, Mestre do Mundo e pregador das gentes”. Assim com este entusiasmo, André de Barros introduz a narração da ação de Vieira nesta Ilha. Em S. Miguel, Vieira hospedou-se no Colégio da Companhia de Jesus. Aí prosseguiu sua obra missionária entre o povo. Na ocasião, por um novo “acaso” da Providência, procurou-o um homem de nome João de Souza Pacheco que por voto, em caso de grave doença, fazia celebrar anualmente a festa de Santa Teresa, em data próxima. João era casado com D. Mariana do Canto, filha de Antônio de Faria Maya e de D. Luiza do Canto que entre os seus familiares conta o P. João Batista Machado, da Companhia de Jesus, que em 1617 deu a vida pela fé, sendo degolado no Japão.
Neste ano de 1654, a festa seria celebrada na Igreja do Colégio dos
Jesuítas, onde estava Vieira, cuja fama de grande orador já
percorria a Ilha. Este portentoso orador, por modo tão incomum, estava
agora ao alcance providencial do Sr. João. Ele logo foi procurar o
Grande Padre, para pronunciar o Sermão da festa. Dizia-lhe que “poucas
palavras suas farão da Seráfica Madre o mais alto elogio.” João
argumentou “que toda a Cidade e toda Ilha se abalavam para ouvir um missionário
que por baixo das ondas vinha buscar remédio para as almas: que desse
consolação às daquele povo, desejosos de ouvir de sua
boca o Evangelho: que agora cresceriam aqueles montes e seriam cultas aquelas
praias, quando por elas se ouvisse repetido o eco de suas vozes: que queria
deixar aos herdeiros de sua casa a glória de que, a seus rogos, pregara
naquele púlpito o P. Antônio Vieira.”
Vieira não poderia negar tão sincero pedido. Logo correu a notícia por toda a Ilha. Todos estavam ansiosos por escutar “Aquele Oráculo Peregrino“.
7- VIEIRA E O SERMÃO DE SANTA TERESA
Chega o dia 15 de outubro. Vieira põe-se no púlpito
como se estivesse “no seu zênite o sol”, diz André Barros. O
Sermão é uma peça memorável, cheia de paradoxos.
Vieira Justifica a ousadia pelo bem comum. Aqui Vieira inclui, como leitura
“paralela”, a justificativa de todas as sua ousadias e de todas as perseguições
que recebe e de que é vítima. “Quem se arrisca pela caridade
não pode correr risco.” (Vieira, 1951:392) – Anexo 2.
Vieira em sua eloqüência “exprimia aqueles incomparáveis
resplendores da sabedoria, erudição e zelo de que estava cheia
a sua grande alma” como assevera André de Barros. No Sermão
falava a força e credibilidade do homem que chegou a ilha, como Jonas,
vomitado pelo mar em nome de Deus. A solenidade da manhã foi seguida
de aplausos nunca ali ouvidos. À tarde o Pe. Vieira foi pregar na Sé
da Cidade. O povo superlotou o Templo que foi pequeno para acolher tanta gente
que enchia uma cidade. Vieira “heróico Pregoeiro do Céu” atendendo
a uma “turba ansiosa”, pregou sobre a reforma dos costumes. Vieira “soltou
neste ponto toda aquela sua nativa eloqüência, envolta a voz em
chamas, de tal sorte acendeu os corações...” André de
Barros diz que as ondas que destroçaram o navio que trouxe Vieira,
“parecia que davam mais fogo ao orador”. Vieira antevê no Sermão
os embates que o esperavam em Lisboa: “Grandes perigos que ainda me restam
e me ameaçam neste tão tenebroso golfo, e mais em inverno tão
verde e em ano tão tormentoso. Mas como há-de temer os perigos
quem neles leva a mesma salvação que vai buscar por meio deles?”
(Vieira,1951:390) – Anexo 2. Com estes atos memoráveis no dia de Santa
Teresa, Vieira completou sua missão não programada aos Açores.
Marcou sua presença para sempre.
III – CONCLUSÃO:
INTERVENÇÃO DE FORÇAS SUPERIORES?
8- VIEIRA SEGUE SEU DESTINO: LISBOA
No dia 24 do mesmo mês de outubro, Vieira embarcou para Lisboa, onde o esperavam momentos épicos de ação. Os meses que passou em Lisboa, após Açores e antes de retornar ao Brasil marcaram época. No dia 1º de janeiro surgiria com o Magnífico Sermão da Sexagésima que representou um autêntico abalo sísmico na sociedade Lisboeta. Não podemos deixar de mencionar que ao sair dos Açores, novamente o mar se levantou em fúria quase levando o navio ao naufrágio. Diz Barros que “talvez temiam os espíritos malignos a guerra que havia de lhes fazer aquela vida. Como não puderam afogá-lo no primeiro naufrágio, intentaram o segundo”.
9- A LUTA CONTINUA
Vieira está preparado como nunca para prosseguir sua luta
pela justiça e pela dignidade da pessoa humana nos grandes fóruns
do mundo. Tem força e engenho capaz de enfrentar qualquer obstáculo,
por mais privilegiado que seja. Ainda irá enfrentar terríveis
“tempestades” políticas e sicológicas. Como venceu no mar, vencerá
também na terra. Apenas o inimigo estará mais camuflado e mascarado.(Vieira,1951:
vol. VIII) – Anexo 3.
Peregrino por destino, deixemos Vieira prosseguindo no seu caminho. Ainda
irá muito longe realizando uma obra fantástica que só
será encerrada com a sua morte, aos 18 de julho de 1697, com 89,5 anos.
Vieira, o incansável guerreiro da esperança, prossegue sua missão.
Muito trabalho ainda o espera. Ainda irá semear muitas e boas sementes
na sua missão de contribuir pra a construção de um mundo
melhor para todos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. Azevedo, João Lúcio (1931) História de Antônio
Vieira, Lisboa: Liv. Clássica.
2. Barros, André (1746) Vida do Apostólico P. Antônio
Vieira, Lisboa: N.O. Sylviana.
3. Lins, Ivan (1956) Aspectos do P. Antônio Vieira, Rio de Janeiro:
Liv. São José.
4. Lopes, Antônio (1999) Vieira o encoberto,Cascais: Principia
5. Peralta, José Jorge (2008) Vieira, Arauto do Humanismo. Disponível
em www.vieira400anos.com.br
6. ___________________________Antônio Vieira um grande mestre a descobrir.
Disponível em www.vieira2008.com.br
7. ___________________________Celebrando Antônio Vieira. Disponível
em www.vieira400anos.com.br
8. ___________________________Vieira na Bahia. Disponível em www.vieira400anos.com.br
9. Vieira, Antônio (1951) Sermões, vol. VIII. Porto:Lello.
Consulte ainda:
Bibliografia Básica sobre Vieira in www.vieira400anos.com.br
Nota: Você pode ler o Sermão de Santa Teresa, reproduzido no sítio: www.vieira400anos.com.br Aí você encontra editado os demais Sermões aqui citados.
ANEXO 1
SERMÃO DE SANTA TERESA
Quinque autem ex eis erant fatuae, et quinque prudentes.
I
E quantas vezes os que pareceram acasos foram conselhos altíssimos
da Providência divina! Acaso parece que estava Cristo encostado sobre
o poço de Sicar, e era conselho da Providência divina, porque
havia de chegar ali uma mulher a Samaritana que se havia de converter. Acaso
parece que entrava Cristo pela cidade de Naim, e era conselho da providência
divina, porque havia de sair dali um moço defunto, que havia de ressuscitar.
Acaso parece que passeava Cristo pelas praias do Mar de Galiléia, e
era conselho da Providência divina, porque havia de chamar dali a dois
pescadores, que, deixadas as redes e o mundo, o haviam de seguir. Parece-me,
senhores, que me tenho explicado. Acaso, e bem acaso, aportei às praias
desta ilha; acaso e bem acaso entrei pelas portas desta cidade; acaso e bem
acaso me vejo hoje neste púlpito, que é verdadeiramente o poço
de Sicar, onde se bebem as águas da verdadeira doutrina. E quem me
disse a mim nem a vós se debaixo destes acasos se oculta algum grande
conselho da Providência divina? Quem nos disse se haverá nesta
Naim algum mancebo morto no seu pecado, que por este meio haja de ressuscitar?
Quem nos disse se haverá nesta Samaria alguma mulher de vida perdida,
que por este meio se haja de converter? Quem nos disse se haverá nesta
Galiléia algum Pedro ou algum André, engolfados no mar deste
mundo, que por este meio haja de deixar as redes e os enredos? Bem vejo que
a força dos ventos e a violência das tempestades foi a que me
trouxe a estas ilhas, ou me lançou e arremessou nelas. Mas quem pode
tolher ao autor da graça e da natureza, que obre os efeitos de uma
pelos instrumentos da outra, e que com os mesmos ventos e tempestades faça
naufragar os remédios para socorrer os perigos? Obrigado da tempestade
e do naufrágio chegou S. Paulo à Ilha de Malta, e do que ali
então pregou o apóstolo, tiveram princípio aquelas religiosas
luzes com que hoje se alumia e se defende a Igreja. Bem conheço quão
falto estou da eloqüência, e muito mais do espírito de São
Paulo; mas na ocasião e nas circunstâncias presentes, ninguém
me pudera negar uma grande parte de pregador, que é chegar a esta ilha
vomitado das ondas.
Uma das coisas mais admiráveis, ou a mais admirável de todas
as que se lêem em matéria de pregação, é
o grande e universal fruto que fez a do profeta Jonas em Nínive. As
maldades da cidade eram as mais enormes, o povo gentílico e sem fé,
o pregador estrangeiro e não conhecido, o sermão brevíssimo,
desarmado e seco, sem prova de razão nem de Escritura, e, contudo,
que este sermão e este pregador convertesse o rei e a corte, e a populosíssima
cidade a uma penitência tão geral, tão extraordinária,
tão pública? Mas era Jonas um pregador vomitado pelas ondas.
Pregava nele a tempestade, pregava nele a baleia, pregava nele o perigo, pregava
nele o assombro, pregava nele a mesma morte, de que duas vezes escapara. Por
certo que não foi tão grande a tempestade de Jonas como a em
que eu e os companheiros nos vimos. O navio virado no meio do mar, e nós
fora dele, pegados ao costado, chamando a gritos pela misericórdia
de Deus e de sua Mãe. Não apareceu ali baleia que nos tragasse,
mas apareceu não menos prodigiosamente naquele ponto um desses monstros
marinhos que andam infestando estes mares. Ele nos tragou, e nos vomitou depois
em terra. Vomitado assim em terra Jonas, o tema que tomou foi: Adhuc quadraginta
dies, et Ninive subvertetur (Jon. 3, 4): Daqui a quarenta dias se há
de soverter Nínive. Em terra onde os terremotos são tão
contínuos e tão horrendos; em terra onde os montes são
vivos, e comem e se sustentam de suas próprias entranhas, e estão
lançando de si os incêndios a rios; em terra onde o fogo é
mais poderoso que o mesmo mar oceano, e levanta no meio dele ilhas e desfaz
ilhas; em terra onde povoações inteiras em um momento se viram
arruinadas e sovertidas, que tema mais a propósito que o de Jonas:
Adhuc quadraginta dies, et Ninive subvertetur? Se Nínive se sovertesse,
seria milagre e castigo, mas, se se sovertesse o que Deus não permitirá
esta cidade, podia ser castigo sem milagre. Supostas todas estas circunstâncias,
mui a propósito vinha o tema ao pregador e ao lugar; mas é o
dia mui de festa para assunto tão triste e tão funesto.
Gloriosa Teresa, terra onde vós estais e onde a devoção
dos moradores tanto vos venera, segura pode estar de ser sovertida. Convertida,
sim; sovertida, não. Por meio de Jonas converteu Deus a Nínive,
e era Jonas tão imperfeito naquele tempo, que desobedecia a Deus e
fugia dele. Mas tanto pode a força da graça! Quando vós,
santa, vivíeis na terra, o maior emprego de vossas orações
era encomendar os pregadores a Deus, para que convertessem e levassem a ele
muitas almas, como vós levastes tantas. Oh! quem merecera nesta hora
um raio da vossa luz e um assopro do vosso espírito! Não é
menor hoje a vossa caridade, nem menos poderosa a vossa valia. Intercedei,
gloriosa virgem, com a virgem e Mãe de vosso Esposo, para que me alcance
do seu esta graça. Bem sabeis, santa, que graça é a que
eu desejo: não aquela graça que faz soar bem as palavras nos
ouvidos, não aquela graça que deleita e suspende os entendimentos,
senão aquela graça que acende as vontades, aquela graça
que abranda, que rende, que fere, que inflama os corações. Desta
graça nos alcançai da Virgem Santíssima quanta ela vê
que há mister a dureza de nossas almas e a frieza da minha. Ave Maria.
II
Com os olhos no céu, com os olhos na terra e com os olhos no Evangelho
determino pregar hoje, que é o modo com que nas festas dos santos se
deve pregar sempre. Deve-se pregar com os olhos no céu, para que vejamos
o que havemos de imitar nos santos; deve-se pregar com os olhos na terra,
para que saibamos o que havemos de emendar em nós; e deve-se pregar
com os olhos no Evangelho, para que o Evangelho, como luz do céu na
terra, nos encaminhe ao que havemos de emendar na terra e ao que havemos de
imitar no céu. (...) (Vieira, 1951:361 a 364).
ANEXO 2
SERMÃO DE SANTA TERESA
VIII
Notai: Qui amat periculum, in illo peribit: quem ama o perigo perecerá nele. Uma coisa é entrar no perigo amando o perigo, outra coisa é entrar no perigo amando a Deus: quem entra no perigo por amor do perigo perece nele, porque o mesmo perigo, a quem ama e por quem se arrisca, o perde; mas quem entra no perigo por amor de Deus, não perece nem pode perecer, porque o mesmo Deus, a quem ama e por quem se arrisca, o guarda. Se vós entrais no perigo por amor da cobiça, quem vos há de guardar? A cobiça? Se vós entrais no perigo por amor da soberba, quem vos há de guardar? A soberba? Se vós entrais no perigo por amor do amor, quem vos há de guardar? O amor profano e cego? Entrai vós nos perigos por amor de Deus e do próximo, e vereis como Deus vos livra e vos segura neles.
Ah! Senhor, bendita seja e infinitamente bendita vossa bondade! Falta-nos
neste passo o exemplo do Evangelho, porque faltaram as virgens prudentes no
conhecimento desta verdade e no exercício desta confiança. Mas
a prova que não temos no Evangelho, temo-la no pregador. Mui ingrato
seria eu, e serei a Deus, se assim o não confessara e assim o não
confessar toda a vida e toda a eternidade. A quem aconteceu jamais depois
de virado o navio e depois de estarem todos fora dele sobre o costado, ficar
assim parado e imóvel por espaço de um quarto de hora, sem a
fúria dos ventos descompor, sem o ímpeto das ondas o soçobrar,
sem o peso da carga e da água, de que estava até o meio alagado,
o levar a pique, e depois dar outra volta para a parte contrária, e
pôr-se outra vez direito, e admitir dentro em si os que se tinham tirado
fora? Testemunhas são os anjos do céu, cujo auxílio invoquei
naquela hora, e não o de todos, senão daqueles somente que têm
à sua conta as almas da gentilidade do Maranhão. Anjos da guarda
das almas do Maranhão, lembrai-vos que vai este navio buscar o remédio
e salvação delas. Fazei agora o que podeis e deveis, não
a nós, que o não merecemos, mas àquelas tão desamparadas
almas que tendes a vosso cargo. Olhai que aqui se perdem também conosco.
Assim o disse a vozes altas, que ouviram todos os presentes, e supriu o merecimento da causa a indignidade do orador. Obraram os anjos, porque ouviu Deus a oração. E não podia Deus deixar de a ouvir, porque orava nela o mesmo perigo. Sabe o mesmo Senhor que por nenhum interesse do mundo, depois de eu o ter tão conhecido e tão deixado, me tornara a meter no mar, senão pela salvação daqueles pobres tesouros, cada um dos quais vale mais que infinitos mundos. E como o perigo era tomado por amor de Deus e dos próximos, como podia faltar a segurança no mesmo perigo?
O mesmo perigo nos livrou, ou se livrou a si mesmo. Os perigos da caridade são riscos seguros, e nos riscos seguros não pode haver perigo. Assim que, Senhor, mudo o estilo, e não vos dou já as graças por me livrardes do perigo, senão me meterdes nele. Quando por tal causa me metestes no perigo, então me livrastes. Grandes são os perigos que ainda me restam e me ameaçam neste tão temeroso golfo, e mais em inferno tão verde e em ano tão tormentoso! Mas, como há de temer os perigos quem neles leva a mesma salvação que vai buscar por meio deles?
Quem cuidais que tirou do perigo a Jonas e quem cuidais que o meteu no perigo?
O não querer ir buscar a salvação dos próximos
o meteu no perigo, e o meter-se no perigo pela salvação dos
próximos o tirou dele. Mandou Deus a Jonas que fosse pregar aos gentios
de Nínive; não quis Jonas, e para fugir da missão, e
ainda do mesmo Deus que lha encomendava, embarca-se de Jope para Társis.
E que lhe sucedeu a Jonas nesta viagem ou nesta fugida?
O que lhe sucedeu foi que, indo todos os navios com vento a popa e mar bonança, só contra o de Jonas se levantou uma tempestade tão terrível, que não bastando amainar velas e calar mastros, não bastando alijar ao mar a carga, não bastando tudo o mais que sabe e pode a arte em semelhantes trabalhos, deixado já o leme e o navio à mercê dos mares e dos ventos, e, desconfiados até do socorro do céu, o piloto e marinheiros, que eram gentios, desceram ao porão onde vinha Jonas a pedir-lhe que fizesse oração ao seu Deus, pois os seus deuses não lhes valiam.
Tal era a tempestade, tal o perigo, tal a desesperação de todos. E bem, profeta Jonas, e vós não quereis ir pregar e salvar as almas dos gentios a que Deus vos manda, pois, quando cuidáveis que fugíeis do trabalho, incorrereis no maior perigo, e perecereis onde vós quisestes, porque não quisestes salvar os próximos onde Deus queria. De maneira que o não querer ir buscar a salvação dos próximos foi o que meteu no perigo a Jonas. E que fez Jonas para sair daquele perigo? Notável caso! Para Jonas sair daquele perigo, mete-se noutro perigo maior pela salvação dos próximos. E este segundo perigo o salvou e livrou do primeiro. Ora vede.
Subido Jonas ao convés do navio, reconheceu que ele era a causa da
tempestade, e para que os demais se salvassem e ele só perecesse, pediu
que o lançassem ao mar. De sorte que aquele mesmo Jonas, que pouco
há se embarcou neste navio por não ir salvar os gentios de Nínive,
esse mesmo pede agora que o lancem do navio ao mar para que se salvem os gentios
do navio. Fazem-no assim por último remédio os marinheiros,
vai Jonas ao mar, traga-o uma baleia, mergulha para o fundo o monstro, somem-se
e desaparecem ambos. Pode haver maior perigo? Pode-se imaginar maior? Não
pode. No mar podia-o salvar ou entreter uma tábua; no ventre da baleia
a morte e a sepultura tudo foi junto. Mas Jonas não se arrojou a este
perigo por salvar os mareantes do seu navio, próximos, ainda que gentios?
Sim. Pois, tende mão, que ainda não desconfio de sua vida. Perigo
tomado pela salvação dos próximos, não pode ser
perigo em que se perigue.
Arrojado do navio, e naufragante, sim; tragado e engolido do monstro-marinho, sim; metido no profundo do mar e sepultado nos mais escuros abismos, sim; mas afogado, mas morto, mas digerido ou mastigado da baleia quem se lançou ao mar pela salvação dos próximos, não pode ser. Torno a dizer que não pode ser; e já o vejo. Olhai para as praias de Nínive. Passados três dias e três noites, aparece ao romper da alva diante do porto de Nínive uma galé de forma nunca vista à vela e só com dois remos.
A vela era a nuvem de água que respirava a baleia, e umas vezes parece que subia, outras que se animava; os remos eram as duas grandes barbatanas com que, batendo a compasso, ia vogando. Abica à praia o desconhecido baixel, levanta aberto pelo meio o castelo de proa, que então se conheceu que era boca, estende a língua como prancha sobre a areia, e sai de dentro vivo e sepultado Jonas. Pasmais do caso? Não pasmeis. Não vos dizia eu que não podia perigar quem por salvação dos próximos se entregou ao mar e aos perigos? Pois, assim lhe aconteceu ao felicíssimo Jonas. Levado de um perigo em outro perigo, uns o livraram dos outros. No navio perigava dos ventos, no mar perigava das ondas, na baleia perigava do aperto da respiração e de tudo, mas como o primeiro perigo foi tomado por caridade, todos os outros perigos eram remédios.
O perigo do mar livrou-o do perigo do navio, o perigo da baleia livrou-o do perigo do mar, e este perigo, como era o último e o maior de todos, livrou-o de si mesmo. Há mais seguro perigar? Há menos perigosa segurança? Com razão disse São Zeno Veronense que foi Jonas mais venturoso no sepulcro que no navio: Felix magis in sepulchro quam navi porque, uma vez que a baleia lhe guardou a vida, muito mais seguro navegava nela que no navio: o navio podia perigar nos mares e nos ventos, a baleia era embarcação segura das tempestades.
Maior tempestade padeceram as virgens no óleo das suas redomas do que
Jonas em tanto mar. Todas naufragaram, porque todas deram em seco: as néscias
no das suas lâmpadas, e as prudentes no da sua avareza. Forte ne forte
foi aquele! Perderam-se cinco, quando se puderam salvar todas, porque não
tiveram caridade as outras cinco para se arriscarem com elas. Tanto perigaram
as néscias no seu perigo, como na demasiada segurança das prudentes.
Se as prudentes se quiseram arriscar por elas socorrendo-as, nesse mesmo risco
se salvariam umas e outras: as néscias, pelo socorro que recebiam,
e as prudentes, pelo socorro que davam, ou, para o dizer com mais certeza,
as néscias pelo risco de que se tiravam, e as prudentes pelo risco
em que se metiam, que quem se arrisca pela caridade não pode correr
risco.
Nenhuma comunidade esteve jamais tão arriscada como o povo de Israel, quando Deus o quis acabar no deserto; e o que fez Moisés para o livrar daquele risco foi arriscar-se também com ele: Aut dimitte eis hanc noxam, aut dele me de libro tuo (Êx. 32,31 s): Senhor, ou haveis de perdoar ao povo, ou riscai-me do vosso livro. É certo que Moisés não podia licitamente querer ser riscado dos livros de Deus, e foi este o mais arriscado lanço em que se meteu nenhum homem. Contudo, pediu este risco, e meteu-se nestes riscos Moisés, seguro de que Deus o não riscaria por ele se arriscar, quando o fazia pela caridade dos próximos, porque os riscos da caridade nem riscam nem arriscam.
Tão longe esteve Moisés de ser riscado dos livros de Deus por esta causa, que antes mandou Deus que se escrevesse em seus livros que chegara Moisés por caridade a pedir que o riscassem deles. Se Moisés se não arriscara, salvara-se ele e perecera o povo; mas porque se quis arriscar pelo povo, ele e o povo, todos se salvaram. O mesmo havia de suceder às nossas prudentes se elas o souberam ser e se souberam arriscar; mas, porque lhes faltou esta ciência e esta prudência, em que Santa Teresa foi tão eminente, por isso eu em comparação dela digo que foram néscias. Em comparação das néscias do Evangelho foram prudentes as prudentes, porque as néscias cuidaram que havia outrem de fazer por elas o que elas não fizeram por amor de si, e as prudentes não quiseram fazer por amor de outrem o que outrem não havia de fazer por elas. Mas estas mesmas prudentes, comparadas com Santa Teresa, foram néscias, porque elas cuidaram que, arriscando-se por amor de Deus e dos próximos, corriam perigo, e Santa Teresa entendia e sabia por experiência que tudo o que se arrisca pela caridade, quando mais se arrisca, então se segura mais. (Vieira, 1951: 388 a 393) (...)
ANEXO 3
SERMÃO DE SANTA TERESA
VIII
(...) As perseguições a que Santa Teresa se expôs quando
empreendeu reduzir a regra carmelitana moderada ao antigo rigor e inteireza
de seu primeiro instituto foram maiores do que se podem imaginar e do que
parece se podiam sofrer. Armou-se contra ela a religião, e armou-se
o mundo, e, o que mais é, que os bons do mundo e os melhores da religião
posto que com bom zelo eram os que mais a perseguiam. Raros eram os que defendiam
seu espírito, todos o tinham por ilusão e enredo do demônio,
muitos por fingimento e hipocrisia, e não faltava quem lhe desse ainda
mais escandalosas censuras. Tudo ocasionavam os tempos, que com as novas heresias
de Lutero andavam mui perigosos e cheios de temores. Mas, como a santa se
arriscava a todos estes descréditos pela salvação e perfeição
dos próximos, em que veio a parar tudo? Os descréditos pararam
em maior estimação, as injúrias em maior honra, as perseguições
em maiores aplausos, e os mesmos religiosos que tinham a Teresa por indigna
filha, a receberam depois por digníssima mãe, e como de tal
se honram e a veneram.
Finalmente, houve muitas pessoas timoratas e doutas que aconselhavam a Santa
Teresa que se retirasse do magistério espiritual das almas, e que na
vida particular e solitária, a que a mesma doçura da contemplação
a inclinava, vacando somente a Deus e a si, seria maior o aproveitamento de
seu espírito. Foi esta a maior prova, por lhe não chamar a mais
apertada tentação, que podia ter a alma de Teresa, cujos mais
prezados interesses, cujas mais amadas delícias, cujos regalos, cujas
ânsias, cujos suspiros, era aquela íntima união com Deus,
quieta e suavíssima, em que, elevada sobre todas as coisas da terra,
tão celestialmente o gozava. Continuou, contudo, a santa prosseguindo
na mesma empresa começada, sem reparar nestes riscos de sua maior perfeição,
e noutros ainda maiores que lhe ameaçavam; e, como todos eram tomados
pela caridade, quanto mais parece que arriscava os dons do céu, tanto
mais se achava rica e favorecida deles. Era muito o que arriscava, mas muito
mais o que recebia. Mercês sobre mercês, favores sobre favores,
glórias sobre glórias, como se os mesmos riscos fossem degraus
para mais subir e crescer.
Em suma, que arriscando Teresa por amor de Deus e dos próximos
saúde, honra e perfeição, dos perigos da saúde
saia mais forte, dos perigos da honra mais acreditada, dos perigos da perfeição
mais santa Oh! quantos e quão seguros louvores se puderam agora discorrer
sobre todos estes perigos, e muito mais sobre o terceiro. Parece que pugnava
nele o espírito contra o espírito, a virtude contra a virtude,
a santidade contra a santidade, mas necessária era tão gloriosa
peleja para tão excelente vitória. Corto o fio, e não
sem dor, ao que quisera dizer. Peço-vos, contudo, licença, para
concluir o sermão na forma em que o propus ao princípio: suposto
que vos não hei de cansar outra vez, perdoai-me esta. (...) (Vieira,
1951: 394 a 395)
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